Boletim da Ordem dos Advogados de Portugal

Boletim OA

Mês: Dezembro 2020

GUIA PARA AS COMPRAS NA INTERNET

O universo onde tudo o que se pode desejar se encontra à distância de um clique e de um número de cartão de crédito, já conquistou 37% dos portugueses com idades entre os 16 e os 74 anos. Tanto cá como no resto da Europa, onde a média de consumidores já está acima dos 50%, as perspectivas são de crescimento continuado. Assim torna-se cada vez mais sensível o domínio dos principais direitos dos consumidores em linha, bem como relembrar os diferentes tipos alternativos de resolução de litígios a que estes actualmente podem recorrer. Esse é o objectivo deste pequeno Guia.

1 | Antes de fazer uma compra

Antes de mais é importante assegurar-se que a loja em linha é fidedigna: deve-se procurar o nome, morada, contacto telefónico, e-mail e número de contribuinte do vendedor. A morada completa é essencial para localizar o vendedor em caso de litígio, portanto não se deve escolher a loja nem comprar algo sem estar disponível um endereço físico ou se apenas houver um apartado postal para a loja. 

As lojas em linha na UE fazem parte das chamadas vendas à distância, são por isso obrigadas a divulgar de forma clara e simples os termos e as condições de venda, com toda a informação sobre o uso dos dados pessoais e o direito de acesso, rectificação e eliminação dos mesmos. Em particular, o vendedor deve facultar antes da compra informações claras, exactas e compreensíveis sobre o produto ou serviço em causa, tal como o preço total, as despesas de porte e o direito a anular a encomenda no prazo de 14 dias. Neste último caso, se a loja omitir informação sobre o Direito de arrependimento/desistência de 14 dias úteis, o prazo para desistir da compra aumenta para 12 meses. 

O consumidor não é obrigado a pagar despesas de porte ou outros encargos se não tiver sido informado previamente dessa obrigação. Caso a encomenda venha de fora do EEE (Espaço Económico Europeu), convém não esquecer que o custo final da encomenda poderá ser substancialmente superior ao preço pago pelo bem. Os custos de desalfandegamento (IVA, taxas e direitos aduaneiros) podem acrescentar, em média, 30% à conta inicial.

2 | O Direito de Desistência | devoluções

Os produtos comprados na internet têm os mesmos 2 anos de garantia gratuita de qualquer outro produto. Mas tratando-se deste tipo de compras em particular, desde o momento em que o produto chega a casa tem 14 dias úteis para devolvê-lo custos e sem dar nenhuma explicação. Se a loja em linha não informar sobre o direito de desistência, o prazo para desistir da compra sem dar explicações aumenta para 12 meses.

Para desistir da compra deverá comunicar ao vendedor a sua decisão (em formulário próprio ou por qualquer outro meio conveniente) e devolver os bens recebidos no prazo de 14 dias a contar da data em que comunicou essa sua decisão ao vendedor. O consumidor não é obrigado a pagar nenhuns encargos com a devolução de que não tenha sido informado previamente e o vendedor dispões de 14 dias para reembolsar o comprador, a contar da data em que é informado da desistência podendo atrasar o reembolso se não tiver recebido os bens de volta ou uma prova do respectivo envio.

3 | Produtos alterados ou com Defeito – Direito a reparação gratuita, substituição, redução do preço ou ao reembolso do que tiver sido pago

Se um produto for comprado na UE através da Internet e for diferente daquilo que foi anunciado ou não funcionar corretamente o comprador tem direito à sua reparação gratuita, substituição, redução do preço ou ao reembolso do que tiver pago (nalguns países poderá não ter o direito de escolha entre estas diferentes opções). Pode exercer esse direito durante 2 anos a contar da data da compra na loja ou da data em que o produto lhe tiver sido entregue. São consideradas cláusulas contratuais abusivas todas aquelas que excluem a responsabilidade por defeitos ocultos.

4 | Publicidade Enganosa

Trata-se do Direito à publicidade fiável, a ser corretamente informado sobre o que está a comprar.
Qualquer empresa que publicite ou venda produtos, ou preste serviços na UE deve fornecer informações precisas e suficientemente detalhadas para lhe permitir fazer uma escolha informada. A «publicidade enganosa» induz em erro ou é susceptível de induzir em erro as pessoas a quem se dirige e legitima uma acção, além de que qualquer ambiguidade na informação disponibilizada deve ser sempre interpretada a favor do comprador e as cláusulas abusivas não são juridicamente vinculativas.

5 | Pacotes de Viagens e serviços de viagem conexos

Se comprar uma viagem organizada, tem direitos bem definidos antes e durante todo o processo de reserva e até ao fim das suas férias, por exemplo, o direito a receber informação pré-contratual, direitos relacionados com a responsabilidade do organizador pela correcta execução dos serviços de viagem incluídos no pacote e direito a protecção em caso de insolvência. Estes direitos aplicam-se às viagens organizadas adquiridas tanto em linha como presencialmente a um operador turístico, agente de viagens ou qualquer outro profissional que actue como organizador deste tipo de viagens.

6 | Meios de resolução alternativa de conflitos de consumo 

  • CEC e Resolução de litigios em linha (RLL)

Na UE, tratando-se de problemas de consumo transfronteiriços, o consumidor poderá contactar a Rede de Centros Europeus do Consumidor (existem escritórios da UE em todos os Estados-Membros bem como na Islândia e na Noruega), que podem aconselhá-lo sobre os seus direitos e contactar gratuitamente o comerciante com vista à resolução do litígio. Pode também recorrer à plataforma de Resolução de Litígios em Linha, ou contactar uma organização nacional de defesa do consumidor.

  • Reembolso através do processo europeu para acções de pequeno montante

O processo europeu para acções de pequeno montante tem por objectivo simplificar e acelerar os processos judiciais em casos transfronteiriços, proporcionando um mecanismo facultativo para além das possibilidades existentes nas legislações dos Estados-Membros. Trata-se de uma alternativa rápida e eficaz aos processos judiciais tradicionais e que pode ser utilizada para transacções transacionais pela Internet até um montante de 5 000 EUR (valor actualizado em 2017). Para iniciar o processo, basta preencher o formulário online existente para este efeito.

Texto: Elsa Mariano

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1. Segundo números de 2018, do INE. 

2. Os anúncios on-line devem fornecer informações corretas relativamente à disponibilidade do produto e à sua composição. Isto significa que deve receber informação sobre as características do produto, o preço, as condições de entrega e de pagamento, a identidade e os dados de contacto do vendedor, assim como a duração do contrato e a forma como lhe pode pôr termo.

3. De acordo com DL n.º 31/89, de 25 de Janeiro, alterado pelo artigo 117º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, “1 – (…) estão isentas as importações de mercadorias que sejam objecto de remessas cujo valor global não exceda 22 euros”. Assim, apenas as encomendas de valor igual ou inferior a 22€ estão isentas de aplicação de impostos.

Entrevista

Joana Portugal Pereira

O que é o IPCC – Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas? A sua acção visa ou pode influenciar os decisores políticos?

Joana Portugal Pereira (JPP) – O IPCC é o único órgão das Nações Unidas que estabelece o interface entre a comunidade de decisores políticos internacionais e a ciência do clima. Cria-se um diálogo convergente entre estas duas comunidades, que têm frequentemente visões muito diferentes dos problemas, prioridades, urgências… É um corpo das Nações Unidas com mais de 30 anos, criado sob a tutela da UNEP (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) e a Organização de Meteorologia Mundial. É o único órgão científico das Nações Unidas, mas tem uma grande influência no vector político.

O IPCC é um orgão politicamente relevante, mas não prescritivo. Os relatórios do IPCC mostram a evidência científica das causas e consequências das alterações climáticas e apontam para possíveis soluções, sem serem vinculativos; são apenas uma base de conhecimento e de apoio à tomada de decisão. O IPCC não desenvolve estudos originais, “apenas” faz a revisão bibliográfica na fronteira do conhecimento científico. Por exemplo, no Relatório Especial sobre as trajectórias para estabilizar o aquecimento global em 1,5o C, mais de seis mil estudos foram revistos e avaliados, portanto estamos a trabalhar em uma escala global, acabando por ter um grande impacto e visibilidade internacional.

Tem-se assistido a acusações de que o debate sobre as alterações climáticas e sobre as suas causas está contaminado ideologicamente. Como cientista, estas acusações merecem-lhe algum comentário?

JPP – As alterações climáticas constituem um desafio para toda a humanidade e não conhecem fronteiras. Na nossa sociedade, temos uma série de valores universais, deveres e direitos adquiridos à margem de questões ideológicas. Um deles, que até está na Constituição da República Portuguesa, no Artigo n.º 66, é o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado. A adaptação e mitigação às alterações climáticas é um dos pilares da nossa sociedade democrática e uma base de valores que entendemos como eticamente correctos e intergeracionais. É um problema político, mas desvinculado de ideologias partidárias de direita ou de esquerda.

O relatório do IPCC preconiza a meta da neutralidade carbónica até 2050A União Europeia avança com o Green Deal – Pacto Ecológico Europeu com este objectivo. Este prazo é exequível?  Como vê a sua concretização? É esse o caminho?

JPP – Deixe-me explicar de onde vem esta necessidade de neutralidade carbónica em 2050. Nós trabalhamos com modelos de optimização, denominados Integrated Assessment Models – Modelos de Avaliação Integrada – que criam trajectórias de futuros plausíveis. São baseados em algoritmos que contabilizam factores demográficos e sócio-económicos, disponibilidade de recursos energéticos, custos de tecnologias e diversas restrições ambientais, designadamente orçamentos de carbono, disponibilidade de recursos hídricos, áreas de reservas ecológicas, etc. Com estas variáveis de entrada, desenvolvemos soluções óptimas ao menor custo e maximizamos bem-estar para diferentes perfis energéticos.

Para atingirmos a meta de estabilização do aquecimento global em 1,5ºC até ao final do século – que corresponde a um orçamento de carbono acumulado de 420 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e) (+/-) –, precisamos de andar para trás. É o que chamamos de backcasting, ou seja, queremos atingir um objetivo no futuro e recuamos no tempo para saber o que é necessário fazer entre hoje e 2100. Os modelos mostram-nos que para estabilizar o aquecimento global em 1,5ºC até 2100, precisamos de reduzir as nossas emissões líquidas em 40-50% até 2030-2040 e atingir neutralidade carbónica até meio do século. Daí esta corrida recente de alguns países, sendo a União Europeia um dos pioneiros na neutralidade carbónica.

Gostaria de chamar a atenção para um ponto, consideramos o planeta terra um sistema isolado, mas nós seres humanos, na nossa sociedade antropogénica pensamos em fronteiras muito bem definidas.

Se trabalharmos é mesmo possível que o consigamos atingir?

JPP – Para atingir a meta de neutralidade carbónica para 2050 da União Europeia (UE) é importante implementar uma série de estratégias e políticas nacionais de curto e médio prazo consistentes com medidas de descarbonização. Estou confiante que os Estados-Membros, na fileira da frente da ambição climática, implementarão políticas nacionais que sejam vinculativas para apoiar o plano de neutralidade carbónica da UE. 

No entanto, gostaria de chamar a atenção para um ponto que considero muito relevante. Para os cientistas do clima, o planeta Terra como um sistema único e fechado; já os decisores políticos apostam em metas nacionais com base em fronteiras muito bem definidas. Por exemplo, quando viajamos, necessitamos de passaporte e, às vezes, de visto, porém as emissões de gases de efeito estufa (GEE) não têm fronteiras. Se os roteiros de neutralidade carbónica apenas contabilizarem emissões directas e visarem o outsourcing das emissões – migrar de uma economia industrial para uma economia com base em serviços que é muito menos carbo-intensiva –, estamos, no fundo, a afastar o problema além fronteiras, o que não se traduz na redução absoluta de GEE. 

Os nossos modelos não actuam dessa forma. Nós avaliamos as emissões globais. Para estabilizar o aquecimento global do planeta estamos pouco interessados se a emissão ocorre no hemisfério norte ou no hemisfério sul. O mais relevante é que o balanço global seja neutro em 2050. E, para tal, necessitamos de uma acção conjunta e coordenada entre todos os países do globo.

O Relatório Especial do IPCC sobre Alterações Climáticas e a Terra mostra como a nossa pegada está a tornar-se insustentável para o planeta e que se exige a mudança de comportamentos. Por onde começamos?

JPP – Actualmente as nossas emissões de dióxido de carbono são cerca de 40 gigatoneladas de dióxido de carbono(CO2) anuais, o que está acima do potencial de captura de carbono do nosso planeta. Neste momento, estamos com um défice de aproximadamente 5%. Façamos um paralelismo com as nossas despesas e receitas mensais. Se tivermos gastos superiores ao nosso salário e fizermos compras a crédito, no final do mês teremos de pagar capital e juros correspondentes, o que significa um maior encargo. Ora, actualmente, o nosso planeta está a gastar mais 5% do que a sua capacidade de carga e, no final do ano, há um saldo negativo equivalente a 2 gigatoneladas de CO2. É este défice que acumulado ao longo de mais de 100 anos se traduz num aquecimento global de 1ºC, comparativamente a níveis pré-industriais. 

Seguindo uma visão tecnocêntrica, teremos no futuro acesso a inovações tecnológicas com capacidade para sequestrar e armazenar o carbono emitido (as denominadas CDR na sigla inglesa), compensando, assim, as emissões dos nossos padrões de consumo insustentáveis. No entanto, estas tecnologias não estão disponíveis a uma escala comercial e não apresentam um custo competitivo. Assim, torna-se urgente iniciar uma mudança comportamental e repensar os nossos padrões de consumo. 

E se me pergunta por onde começar, eu diria que devíamos começar pela questão alimentar. Pela primeira vez, o IPCC avaliou a pegada ecológica da produção de alimentos de uma forma integrada e transversal a todos os setores da economia, contabilizando não apenas os impactos da fase agrícola, mas também de todos os processos a montante e jusante, incluindo a produção de fertilizantes e outros consumos energéticos, o processamento agroindustrial e a distribuição de alimentos desde o ponto onde são produzidos até ao consumidor final.  Com esta abordagem integrada, os alimentos que consumimos equivalem entre 21 a 37% das emissões de GEE globais. É imenso. É superior à queima de combustíveis fósseis. Tendencialmente, sempre apontámos o dedo ao agricultor, acusando-o do uso ineficiente de recursos, porém vimos neste relatório que temos um potencial de redução de GEE muito significante a partir da optimização de toda a cadeia logística e de mudanças de dietas alimentares, de aproximadamente 8 gigatoneladas.

E se me pergunta onde começamos, eu diria que devíamos começar pela questão alimentar.

Este é um número assustador, significa que a nossa acção colectiva tem um impacto enorme.

JPP – Sim, é de facto um impacto muito significativo. E inclui também as perdas e desperdícios alimentares que não chegam ao consumidor final. Vimos que 1/3 dos alimentos produzidos são perdidos na fase agrícola ou desperdiçados pelo consumidor. No hemisfério sul, temos maioritariamente perdas durante a produção, por ineficiências de mercado, fraca infraestrutura e falhas nos sistemas de refrigeração. Por seu turno, no hemisfério norte, temos um grande desperdício de alimentos, devido a questões culturais e de sobreconsumo. No total, esta perda e desperdício corresponde aproximadamente a 8-10% das emissões de GEE globais. Além do impacto ambiental, estamos a perder recursos valiosos e a agravar a segurança alimentar em várias regiões do planeta com problemas gravíssimos de subnutrição.  

A questão de segurança alimentar teve muita visibilidade após o lançamento do Relatório Especial e surgiram alguns equívocos. Como já referi, os relatórios do IPCC não são vinculativos nem prescritivos. Não há nenhuma menção explícita que sugira a eliminação de carne das nossas dietas. O que defendemos é que tem de haver um reequilíbrio dos nossos padrões de consumo alimentar e avaliámos possíveis benefícios de dietas mais variadas e saudáveis, como menor dependência de produtos animais e lacticínios. Algumas regiões do globo estão a consumir demasiados recursos que, inclusive, têm consequências negativas para a saúde humana. Há uma série de correlações entre sobreconsumo de produtos derivados de carne, aumento de obesidade e maior risco de doenças cardiovasculares, cancro, etc. Por outro lado, temos regiões com uma grande proporção da população com problemas de subnutrição, com carências nutricionais elevadíssimas.

Há países mais poluentes e países menos poluentes. Neste contexto, como perspectiva a regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris, que se tem revelado um factor de bloqueio?

JPP – O Acordo de Paris foi assinado sob a tutela da Convenção-Quadro das Alterações Climáticas (UNFCCC). O artigo 6 é muito complexo e ainda não se encontrou solução para resolver o impasse. Por um lado, os países com um grau de desenvolvimento ainda desfasado têm maiores necessidades de crescimento e prioridades de desenvolvimento socio-económico. Por outro lado, os países desenvolvidos têm maior capacidade institucional, tecnológica e financeira para estar na vanguarda da mitigação. 

Na gíria climática, referimos que é necessário apoiar as nações menos desenvolvidas a dar o salto do sapo – o leapfrogging. Por exemplo, em países onde ainda não há os “vícios” de um desenvolvimento dependente de combustíveis fósseis seria muito menos desafiante expandir energias renováveis e introduzir veículos menos poluentes, do que desactivar centrais termoeléctricas a carvão ou sucatear frotas de transportes sem regulações ambientais. 

Do meu ponto de vista, faz pouco sentido investir em infraestruturas energéticas carbo-intensivas que terão um tempo útil de vida de 40-50 anos. Estou a pensar, designadamente, em termoeléctricas a carvão ou mesmo a gás natural, que agora é muito cotado como um combustível de transição energética. Estamos simplesmente a criar um lock-in tecnológico ao investir em tecnologias que vão ter um tempo útil de vida de 40-50 anos, quando em paralelo defendemos a neutralidade carbónica daqui a 30 anos.

Que outras alternativas de energia existem aos combustíveis fósseis que não agridem o meio ambiente? Vemos que existem alternativas como a energia hidroeléctrica, mas as barragens afectam as propriedades biológicas, químicas e físicas dos rios. Como garantirmos a sustentabilidade?

JPP – A dependência dos combustíveis fósseis não é apenas no setor de geração de energia eléctrica e transportes, mas também no sector industrial. Vejamos, por exemplo, a petroquímica. Olhando à volta da nossa sala conseguimos imaginar um futuro sem plásticos? Como seria um futuro sem petroquímica? Costumo dizer que o petróleo é demasiado precioso para ser queimado numa máquina de combustão com uma eficiência de 30%. Precisamos, por isso de pensar em formas mais inteligente e eficientes de utilizar as reservas disponíveis e apoiar uma transição de baixo carbono gradual e inclusiva.

Acha que o crime de Ecocídio deverá ser tipificado como uma das possíveis soluções para o combate à destruição severa dos habitats a que assistimos?

JPP – Na ciência climática, os tipping points descrevem fases a partir das quais o planeta perde a capacidade de reverter mudanças fruto da actividade antropogénica. Estas mudanças estão a ser cada vez mais rápidas e com impactos mais severos. Por exemplo, o ano passado, perdemos cerca de 1 milhão de hectares de floresta Amazónica. Tal corresponde a um aumento de 30% face ao ano anterior e a maior taxa de desflorestação desta década. Apesar da resposta do governo brasileiro não ter sido a mais adequada numa perspectiva de sustentabilidade, foi muito gratificante observar a consciencialização mundial e a influência que alguns países exerceram para levar as instituições brasileiras a agir de forma mais célere.

Na história do planeta, existem registos frequentes de catástrofes naturais relacionadas com o clima, como inundações e períodos de seca. Quais as principais razões que nos levam a acreditar que actualmente essas catástrofes deixaram de ser naturais e podem ser atribuídas à acção humana?

JPP – A ciência também tem muitas interrogações. Actualmente observamos uma maior frequência e intensidade de eventos climáticos extremos (secas prolongadas, períodos de maior pluviosidade e tempestades severas). No passado, não tínhamos registo de uma tão intensa ocorrência e magnitude destes eventos, o que nos leva a crer que poderão ter uma influência antropogénica. Porém, os modelos climáticos existentes ainda não têm elevada confiabilidade para estabelecer uma relação de causa-efeito direta.

Ainda sobre a COP. As expectativas que tinha eram moderadas comparadas com as expectativas que foram criadas pelos media e com as expectativas que existiam do público em geral.

JPP – A UNFCCC tem a sua própria agenda em consonância com o definido no Acordo de Paris. Está previsto para 2020, a resubmissão das metas nacionais, as chamadas NDCs (Nationally Determined Contributions). As primeiras NDCs foram submetidas logo após a ratificação do Acordo. Este ano, com as segundas NDCs, há expectativas de que as metas nacionais sejam mais ambiciosas e compatíveis com objectivos do Acordo de Paris (estabilização do aquecimento global “bem abaixo” de 2.0ºC e idealmente em 1.5ºC até ao final do século, comparativamente com níveis pré-industriais).

Seguindo a trajectória do Acordo de Paris com as primeiras NDCs e, assumindo que as metas são cumpridas, estamos na linha para um aumento do aquecimento global em cerca de 3.0ºC. Daí a necessidade de aumentar a ambição das metas nacionais. Vários países pioneiros na mitigação climática já assumiram esse compromisso, comprometeram-se em submeter este ano metas nacionais com orçamentos de carbono mais apertados.

O mundo não vai acabar quando chegarmos a 1.5ºC. Houve muitas manchetes de jornais dizendo isso. Acho que essa notícia é excelente para vender jornais porque é manchete da catástrofe.

As alterações climáticas são realmente uma sentença de morte garantida nas próximas décadas?

JPP – Sem dúvida que há uma grande urgência em agir. O Relatório Especial do 1.5ºC mostra inequivocamente que necessitamos de implementar a uma escala sem precedentes e muito rapidamente uma série de opções de baixo carbono que passam também pela mudança comportamental, como expliquei. E porque é que há essa urgência? Porque quanto mais depressa começarmos a adoptar matrizes energéticas de baixo carbono e padrões de consumos menos carbo-intensivos, maiores benefícios socio-económicos daí advêm. 

O mundo não vai acabar ao atingirmos um aquecimento global de 1.5ºC. Mas teremos com toda a certeza desafios de desenvolvimento acrescidos e impactos climáticos desconhecidos. É uma corrida contra o tempo, mas ainda vamos a tempo! Por isso, acredito que há múltiplas vantagens em acções precoces, rápidas e de grande escala. Faço muita pressão a nível social e, dentro das minhas limitações, também com os decisores políticos para que adoptemos medidas mais ambiciosas. Porém, é essencial agirmos de forma ponderada e conjunta. De pouco ou nada serve, apenas um puxar a corda porque não será suficiente. Como lhe dizia antes, as emissões não têm passaporte.

Texto: Diana Conceição

Fotografias: Fernando Piçarra

Editorial

Pedro Costa Azevedo

O Boletim da Ordem dos Advogados encerra, nesta edição, um ciclo iniciado neste mandato do Conselho Geral. 

As alterações operadas devem ter sido visíveis para todos, desde o suporte até à política editorial, sob pena de termos falhado, e já foram abordadas noutras edições, pelo que não vos maçarei com nova exposição. Como um dos responsáveis, apenas deixo o óbvio desejo de que possam deixar frutos.

Foram dois anos e meio de fecunda aprendizagem, em que pude testemunhar que, pese embora as habituais vozes pessimistas de que o mundo está sempre negro e em contramão, o prestígio da Ordem dos Advogados se mantém e, em certa medida, até foi consolidado.

Entrevistámos figuras de destaque da vida portuguesa e do nosso panorama jurídico e contámos com a colaboração desinteressada e pronta de diversas personalidades, advogados, magistrados, professores de Direito, juristas e não juristas. Em todos, um ponto comum: a disponibilidade livre e prestigiada de participar numa publicação da Ordem dos Advogados. 

Felizmente, foram muito raras as recusas ou os impedimentos invocados.

Para o caminho percorrido, foi essencial o contributo de muitos. No entanto, não posso deixar de individualizar alguns, pelo que me perdoarão ocupe algum espaço para imprescindíveis agradecimentos.

Tenho de agradecer obviamente ao Bastonário Guilherme Figueiredo que, não bastando ter-me iniciado na participação activa na vida da Ordem dos Advogados, me lançou para este estimulante desafio. Foi um orgulho e uma honra ter colaborado neste seu bastonato (que a História se encarregará de julgar).

A marca deixada por este Boletim também muito lhe será devida. Devo dizer que sempre concedeu total liberdade na escolha dos conteúdos e na política traçada. Não deixando de estar sempre atento e pronto a colaborar, nunca impôs qualquer critério, matéria ou escolha. Quem o conhece certamente não ficará surpreendido.

Um agradecimento especial é devido ao Presidente da Comissão de Letras e Artes, Florentino Marabuto. Tomou em mãos o encargo de preencher o espaço do Boletim baptizado com o nome da comissão, tendo sempre sido um exemplo de criatividade e pontualidade, num percurso sem falhas.

Uma palavra de muito apreço e gratidão para a Editora Sandra Coelho, do Departamento Editorial da OA. Aliou uma extrema competência a uma mão firme e segura na condução de cada edição. Ao seu lado, o restante Departamento Editorial, que com um trabalho muitas vezes pouco perceptível externamente, contribuiu com artigos de elevada qualidade e fruto de aturado estudo. Demonstraram que nem só os advogados são os responsáveis pelo que de bom existe na nossa Ordem.

Na presente edição abordamos temas relacionados com o Direito do Consumo. Em tempos em que a economia mundial vive muito suportada na transacção de bens de consumo, é crucial sabermos quais as regras que regulam esse sector da actividade.

O comércio electrónico e à distância, a utilização de dados pessoais e até as novas formas e meios de resolução de litígios são realidades incontornáveis que devem merecer especial atenção dos advogados, quer na perspectiva do consumidor quer na perspectiva do operador.

Como habitualmente sucede, a tensão resulta de dois grandes eixos de actuação que acabam por estar contrapostos. O reduzido valor económico de grande parte das transacções de bens de consumo não pode servir para um relaxamento no cumprimento de direitos essenciais, como a protecção da vida privada e dos dados pessoais e o direito à informação. A importância deste sector de actividade para a economia global e para a inovação tecnológica, com o que isso representa na criação de postos de trabalho e riqueza, aconselha a que exista um especial cuidado na regulação, de modo a que não se acabe por asfixiar uma importante fonte de recursos e de bem-estar.

Aproveitamos também esta edição para abordar um tema que vai muito para além da vida jurídica, ainda que, no futuro, acabará fatalmente por condicioná-la, como acontece com qualquer fenómeno com repercussões na vida dos cidadãos: as alterações climáticas. Entrevistamos a cientista portuguesa Joana Portugal Pereira, do Grupo de Trabalho III sobre Mitigação de Alterações Climáticas do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), baseado no Centre of Environmental Policy no Imperial College London. 

Em tempos em que existem vários alertas para a contaminação ideológica da discussão, é essencial procurar vozes objectivas e especialmente conhecedoras do fenómeno. As respostas que eventualmente vierem a ser dadas pelo Direito apenas serão eficazes e eficientes se libertas de preconceitos e de qualquer pulsão ideológica, que utilize este grave problema como um meio para atingir outros fins.

Um último apontamento, este mais pessoal. Termina aqui também um ciclo de mais de dez anos ao serviço da Ordem dos Advogados, primeiro no Conselho Distrital, depois Regional, do Porto e, mais recentemente, no Conselho Geral. Sendo extremamente gratificante, não deixa de ser um dever que tem de estar no horizonte de qualquer advogado. A Ordem dos Advogados é essencial para a Advocacia, mas, acima de tudo, para a defesa do Estado de Direito, dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e da administração da justiça, pelo que os advogados devem ser os primeiros a servi-la e a defendê-la.

Antevendo-se momentos difíceis para as profissões reguladas, como nunca se cansou de referir o actual Bastonário em diversas intervenções, e que até motivaram uma edição do BOA, em Setembro de 2018, dedicada aos Actos Próprios dos Advogados (http://ordemdosadvogados.impresa.pt/oa-13/capa-1), é essencial que o papel da nossa Ordem não se esgote na defesa das aspirações legítimas, mas apesar de tudo redutoras, do dia-a-dia dos Advogados.

Pedro Costa Azevedo
Director do Boletim da Ordem dos Advogados 

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